A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, publicada em 17 de maio de 2021, enuncia um elenco de direitos, liberdades e garantias que visam reforçar as garantias dos cidadãos no domínio digital, designadamente perante situações de utilização abusiva e não autorizada de dados pessoais, a proliferação de desinformação, a violação da segurança e sigilo das comunicações, bem como a desigualdade de acesso à Internet, numa altura que a utilização da Internet nas relações sociais e profissionais ganhou ainda mais protagonismo e expôs os riscos advenientes da sua utilização, bem como as insuficiências existentes no acesso. O diploma entrará em vigor no mês de julho.
– Direito de livre acesso à Internet:
A Carta Portuguesa reconhece o direito de livre acesso à Internet por todas as pessoas, com vista a combater a desigualdade que se verifica no seu acesso por parte de pessoas que se encontrem desfavorecidas em função da sua qualificação, rendimento ou área geográfica, que se tornou ainda mais patente com a imposição de trabalho e ensino à distância.
Com vista à concretização de tal direito, o Estado compromete-se a eliminar quaisquer barreiras no acesso à Internet, incentivando e garantindo o direito ao desenvolvimento de competências digitais por parte de todas as faixas etárias, bem como a reduzir as assimetrias em matéria de conectividade, com vista a que qualquer área geográfica tenha acesso à Internet com qualidade.
A par disso, e assumindo particular importância, o Estado propõe-se a criar uma tarifa social de acesso a serviços de Internet para clientes finais economicamente vulneráveis e que deverá constar do leque de oferta de todas as operadoras, surgindo como auxílio de agregados familiares de baixos rendimentos ou de pessoas que beneficiem de certas prestações sociais. É uma medida imprescindível para efetivar a inclusão digital, tendo já sido objeto de aprovação por parte do Conselho de Ministros.
Neste âmbito, destaca-se também o direito à neutralidade da Internet, que pretende impedir a discriminação ou restrição dos conteúdos transmitidos e recebidos através da Internet, em função do remetente ou destinatário, bem como do tipo e conteúdo da informação.
– Direito à liberdade de expressão e criação em ambiente digital e direito à proteção contra a desinformação:
A Carta surge com um conjunto de medidas de combate à produção ou difusão de desinformação on-line, preocupação que tem ganho predominância nos nossos dias. Esta proteção tem de ser articulada com o direito à liberdade de expressão em ambiente digital previsto no diploma, que reconhece a liberdade de qualquer um criar, partilhar e difundir informações e opiniões em ambiente digital, direito que não deixa de configurar um corolário do constante na nossa lei fundamental. Por tal facto, a Carta avança, desde logo, com uma definição de desinformação, considerando qualquer narrativa comprovadamente falsa ou enganadora, divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público e que seja suscetível de causar prejuízo ao mesmo. Tal definição contém elementos difíceis de concretizar pelo que o diploma tenta auxiliar na sua interpretação, considerando que informação comprovadamente falsa ou enganadora é, entre outros, a que deriva de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, conceitos que não ficam igualmente isentos de concretização e comprovação no caso concreto.
Ainda assim, entende-se que os limites de ambos os direitos poderão conflituar em determinados casos, invocando uma análise cuidada sobre a extensão de cada um, para que nenhuma das pretensões da presente Carta acabe inutilizada, incluindo o próprio direito à neutralidade da Internet. Em seguimento de tal objetivo, o Estado compromete-se a apoiar a criação de estruturas de verificação de factos pelos órgãos de comunicação social, bem como a atribuição de selos de qualidade.
– Direito ao testamento digital:
Reconhece-se a relevância do conteúdo criado em ambiente digital, que recebe também particular atenção na sua proteção enquanto criação intelectual, artística, científica e técnica, bem como aos dados pessoais constantes de perfis e contas pessoais em plataformas digitais, prevendo a possibilidade do titular, com capacidade testamentária, dispor antecipadamente sobre os mesmos. Confere-se primazia à estipulação contratual do titular sobre a não supressão dos seus perfis pessoais em redes sociais ou simulares junto dos prestadores do serviço. Nesta matéria não deixam de surgir questões sobre a típica vinculação a cláusulas contratuais gerais criadas em bloco e sem individualidade, podendo o titular vincular-se a tal disposição sem compreender, no momento, os efeitos práticos da sua opção.
– Proteção de dados pessoais, direito ao esquecimento, segurança e sigilo das comunicações:
A par da legislação existente, a Carta Portuguesa vem reforçar, de modo mais amplo, o direito à privacidade e à proteção dos dados pessoais, visando garantir que todos têm direito à privacidade nas comunicações eletrónicas, à portabilidade dos seus dados, à explicação do processo decisório mediante o uso de algoritmos, bem como, ao direito de obter o apoio do Estado no exercício do direito ao esquecimento.
Nesta sede, prevê-se a proteção contra o geolocalização abusiva, exigindo que a utilização de dados de localização pelas plataformas se dê apenas mediante o consentimento do titular ou autorização legal.
– Direitos digitais face à Administração Pública:
Reconhece-se garantias aos administrados especificamente em relação aos procedimentos administrativos digitais, garantido o direito à informação, à assistência pessoal em relação a procedimentos exclusivamente digitais, a reutilização de dados que já se encontrem em aplicações informáticas de serviços públicos de modo a evitar um fornecimento repetitivo de dados, bem como à livre utilização de uma plataforma europeia digital única para aceder a informação.
Por fim, e com vista à boa aplicação e execução da Carta Portuguesa, é reconhecida a figura de ação popular digital, permitindo que os cidadãos possam assegurar a defesa dos seus direitos digitais e reagir contra eventuais violações do disposto na Carta.
O diploma configura um marco importante na transformação digital da sociedade portuguesa, mas surge, em relação a determinados aspetos, como um reforço de direitos e garantias previstos na legislação existente, mas que encontram um novo incentivo de ação. É, parece-nos, na consagração do direito de livre acesso e à neutralidade da Internet, materializados na redução do preço de acesso à Internet e no nivelamento de conectividade nas diferentes zonas do país, bem como na proteção contra a desinformação, que se encontra alguns dos seus maiores pilares.
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