Quando em 2008, Satoshi Nakamoto, programador ou conjunto de programadores (ninguém sabe até à data), publicava na lista de discussão “The Cryptography Mailing”, uma descrição de uma moeda livre e descentralizada, a que chamou Bitcoin, a qual utilizava como base do seu funcionamento uma tecnologia, bem mais antiga e quase esquecida, designada por blockchain, ninguém imaginaria que podíamos estar perante uma fenda profunda do conceito de moeda e do paradigma em torno do dinheiro. Muito menos poderíamos antecipar que após o Bitcoin, iriam existir quase 20.000 outras criptomoedas, ou afirmar com elevado grau de convicção, que países como os EUA ou o Brasil permitiriam a utilização de criptomoedas como meio de pagamento de salários, como acontece já hoje em dia.
Impõe-se então tentar perceber se no nosso ordenamento jurídico-laboral, podemos utilizar criptomoedas para pagamento a solo de salários.
Desde logo, analisado o Código do Trabalho, somos levados a crer que a resposta terá de ser a priori negativa.
Ora, o Código do Trabalho prevê como forma de cumprimento de retribuição, a sua satisfação “em dinheiro”, sendo, porém, admissível, remunerações em espécie. Prevendo também a estabilidade e certeza de uma parte da retribuição, com vista a permitir a subsistência do trabalhador, o que será garantido por via do pagamento em dinheiro.
Neste conspecto, criptomoedas serão moedas sem reconhecimento legal generalizado que funcionam como dinheiro, sem que, no entanto, se possa considerar preenchido o conceito de dinheiro, mas, virtualmente, apenas de “moeda virtual”. Neste sentido posiciona-se a Autoridade Tributária e Aduaneira, que clarifica no âmbito do processo n.º 5717/2015, que “moedas virtuais” não são, tecnicamente, consideradas “moeda” por não disporem de curso legal ou de poder liberatório em Portugal”. Posição que vem validada e estendida pela Diretiva (UE) 2018/843 do Parlamento Europeu e do Conselho de 30 de maio de 2018, que afirma que moeda virtual é uma representação que “não possua o estatuto jurídico de moeda ou dinheiro, mas que é aceite por pessoas singulares ou coletivas como meio de troca e que pode ser transferida, armazenada e comercializada por via eletrónica”.
Ademais, na generalidade, as criptomoedas são extremamente voláteis quanto ao seu valor, sendo caracterizados como um ativo de elevado risco, o que possibilitava que um salário de mil euros pago em criptomoedas, pudesse chegar a zero euros em questão de minutos ou segundos, e assim, não permitindo a segurança, certeza e estabilidade do núcleo mínimo da retribuição pela prestação de trabalho. Segurança essa que, até regulação profunda nesta matéria, também não seria alcançada pelas designadas stable coins ou criptomoedas estáveis.
Nesta senda, e chegados à conclusão de que as criptomoedas não podem servir para o pagamento a solo dos salários de trabalhadores, o que, de resto, é também a posição da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), podemos colocar-nos a questão de saber se poderão mesmo assim ser pagas retribuições com criptomoedas, nomeadamente a título de retribuição em espécie.
Nesta sede, parece viável que, além do salário do trabalhador, a retribuição total possa integrar criptomoedas enquanto retribuição em espécie, desde que o valor entregue não exceda o valor entregue em dinheiro, cumprindo o limite imposto pela Lei. No entanto, cumprir com este limite poderia demonstrar-se difícil, uma vez que no momento da entrega da criptomoeda o valor poderia não exceder o da retribuição paga em dinheiro, e, somente uns dias, horas, ou mesmo alguns minutos depois, o valor poderia passar a exceder.
Destarte, a admissibilidade de um “criptosalário” implicaria a alteração do Código do Trabalho, de modo a equiparar as moedas virtuais criptografadas a dinheiro, sendo que nada parece obstar à possibilidade de a entidade empregadora atribuir um prémio de bons resultados ou uma gratificação ao trabalhador pagos em criptomoedas, desde que estas importâncias respeitem os limites legalmente definidos.
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