Contratação Pública e Concorrência: uma Dicotomia em Convergência – Artigo de opinião de Rui Pedro P. Pinto

A contratação pública representa um mecanismo de importância capital para o desenvolvimento económico e social de qualquer Estado, constituindo um instrumento de edificação de políticas económicas e sociais, salientando-se, nesta última finalidade, o seu confronto com o direito da concorrência. Repare-se que esta representa em Portugal 19,5% da despesa pública total e 10% do PIB, sendo que, se nos reportarmos apenas ao ano de 2018, a contratação pública em Portugal, atingiu os 6.824 mil milhões de euros, em resultado de 128.351 contratos celebrados[1]. Pelo que, quando ineficiente, leva ao desperdício de fundos públicos, que poderiam ser redirecionados para outras finalidades de interesse social, sendo, nesta senda, a concorrência, fundamental para a promoção dessa mesma eficiência.

Destarte, quando nos debruçamos sobre esta temática, não podemos deixar de evidenciar o progresso legislativo, decorrente das alterações ao Código dos Contratos Públicos (C.C.P)[2], no sentido de fazer face às exigências de respeito pelos princípios da não-discriminação, da igualdade de tratamento, da imparcialidade, da proporcionalidade, da tutela jurisdicional efetiva, da transparência e da concorrência[3], de modo a alcançar a desejável convergência entre o interesse público e o interesse privado. Todavia, a existência de práticas anti-concorrenciais neste contexto é ainda uma realidade. Neste sentido, os indícios de harmonização do direito da contratação pública com o direito da concorrência são claros, repare-se que em muitos Estados-membros, as competências de regulação da contratação pública, previstas nos artigos 83.º e seguintes da Diretiva 2014/24/UE, foram cometidas, justamente, às Autoridades da Concorrência, bem como, em Portugal, onde se tem assistido a um esforço de articulação entre entidades no combate à cartelização na contratação pública, como são exemplos, o Tribunal de Contas, a Autoridade da Concorrência e a Inspeção-Geral de Finanças.

Ora, embora o direito da concorrência não seja diretamente aplicável às entidades adjudicantes, uma vez que estas não prosseguem qualquer tipo de atividade comercial, não sendo, deste modo, classificadas como empresas para efeitos da sua aplicação, não podemos deixar de evidenciar, que à luz do novo Código dos Contratos Públicos – como é exemplo o artigo 16º, nº 2 C.C.P – aquelas entidades devem assegurar a aplicação do princípio da concorrência, isto é, ainda que a sua aplicação seja prima facie, à luz do código, devem procurar evitar que, através de compras públicas, se gerem distorções no funcionamento dos mercados. Por outro lado, em relação aos concorrentes, o C.C.P só se aplica a todos aqueles que atuem de acordo com o princípio da concorrência, isto é, que tenham uma finalidade lucrativa ou assumam os seus prejuízos. Assim, através de um conjunto alargado de operadores, o novo C.C.P, reforçou o papel do direito da concorrência na contratação pública.

Desta feita, não podemos deixar de analisar a controversa questão do denominado “preço anormalmente baixo”, que sofreu alterações por via do DL n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, e que constituiu um claro avanço do ordenamento jurídico português nesta matéria. Porém, saliente-se, que nos encontramos, em ambos os cenários, perante situações em que a proposta apresentada pelo concorrente ao concurso público é considerada inelegível, uma vez que o seu valor é considerado como “anormalmente baixo”, sendo que à luz do artigo 71.º C.C.P, o que se verifica é a alteração da regra de fixação do critério de definição daquela figura, eliminando-se a sua indexação ao preço base.

Ainda assim, a hermenêutica da norma anterior à revisão legislativa de 2017 é de fácil interpretação, ou seja, qualquer proposta cujo valor se situasse abaixo das percentagens, taxativamente definidas na lei, – 40% em caso de contrato de empreitada de obras públicas e 50% nos restantes contratos – era anómala e, deste modo, excluída, uma vez que oferecia menos garantias de cumprimento efetivo e com a qualidade pretendida, sendo, deste modo, potenciadora de um processo de degradação das condições de trabalho e da prática de graves ilegalidades, tendo dado muitas vezes origem a conluios ou a situações de alinhamento de preços entre os concorrentes, distorcendo a concorrência e prejudicando as entidades adjudicantes, situações estas muito evidentes na nossa história. Relembre-se a realidade existente nos EUA no século XIX – antes da entrada em vigor do Sherman Act – onde eram colocados anúncios nos jornais, convocando empresas de construção civil para reuniões, tendo em vista decidir quem iria ganhar a próxima empreitada de obras públicas.

Todavia, hoje a realidade jurídica é distinta, uma vez que as entidades adjudicantes passam a poder definir, no programa do concurso, as situações em que o preço ou o custo de uma proposta é considerado anormalmente baixo. Assim, a redação do artigo 71.º do C.C.P, modifica o critério para a fixação do preço anormalmente baixo, eliminando-se a sua indexação ao preço base, podendo assentar em qualquer critério que a entidade adjudicante venha a considerar relevante, designadamente o desvio percentual em relação à média dos preços das propostas a admitir. Ora, esta alteração é a nosso ver muito positiva e um claro progresso da contratação pública em Portugal, tão importante para o desenvolvimento económico e social do nosso país, uma vez que, juntamente com o papel mais ativo de determinadas entidades, como a Autoridade da Concorrência, nos procedimentos de contratação pública, ainda que não seja de uma forma efetiva, têm contribuído para o combate ao conluio e à cartelização.[4]

Outras evidências da referida harmonização do direito da concorrência na contratação pública poderão ser referidas, como por exemplo, a previsão do artigo 70º, nº 2, al. g) C.C.P, que permite a exclusão de propostas, quando existam fortes indícios de fraude e de acordos ou atos suscetíveis de falsear as regras da concorrência, bem como, o acesso da Autoridade da Concorrência a toda a informação constante no site base.gov.pt, de forma a fiscalizar e prevenir eventuais práticas anti-concorrenciais.

Por outro lado, tendo em vista a celeridade processual na jurisdição administrativa, a Lei n.º 114/2019, de 12 de maio, publicada no dia 22/05/2019, veio proceder à décima segunda alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF). Assim, no domínio da especialização, as alterações introduzidas passam pela possibilidade dos Tribunais Administrativos de Círculo poderem ser desdobrados, entre outros, em Juízos de Contratos Públicos, cuja competência reside no conhecimento da validade de atos pré-contratuais, formação, interpretação, validade e execução de contratos administrativos celebrados ao abrigo da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual. Ora, as vantagens da especialização judicial são claras, nomeadamente, no que tange à defesa dos princípios normativos da contratação pública, entre os quais, como vimos anteriormente, a concorrência, e, nessa senda, basta analisarmos o panorama internacional[5], para extrairmos tal conclusão. No entanto, podemos elencar, logo à partida, três grandes vantagens nessa especialização que nos referimos: maior eficiência, maior qualidade e uniformização de toda a estrutura judiciária.[6] Pelo que, ainda que as mesmas sejam uma decorrência das recomendações da Comissão Europeia, a criação de juízos especializados para a contratação pública, bem se compreende, atenta a sua incontornável importância económica e financeira e especial complexidade jurídica.

Por fim, embora afiramos uma tendência de progresso e não obstante todos os pontos positivos do novo código, pela importância que esta temática tem para o desenvolvimento nacional, merece, do nosso legislador, uma atenção redobrada, carecendo de uma aproximação à realidade económica e social do país, bem como, às questões centrais da atualidade, através da inclusão de critérios que garantam a sua salvaguarda, num equilíbrio entre estes e os vários princípios norteadores da contratação pública, apostando, desta forma, no reforço da prevenção e deteção de práticas fraudulentas, através da criação de procedimentos de contratação pública menos vulneráveis ao conluio, bem como, pelo reforço dos instrumentos que visem a sua deteção e a aplicação rigorosa das regras da concorrência.


[1] Cf. Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P. Contratação Pública em Portugal – 2018. Disponível em: https://www.impic.pt/impic/assets/misc/relatorios_dados_estatisticos/RelContratosPublicos_2018.pdf. [2] Em consonância com a Diretiva 2014/23/UE e Diretiva 2014/24/UE. [3] Cf. Inês, P.D (2018). “Os princípios da Contratação Pública: o princípio da concorrência”. Centro de Estudos de Direito Público e Regulação. [4] Veja-se, por exemplo, a acusação da Autoridade da Concorrência à MEO – Serviços de Comunicações e Multimédia, S.A. e a NOWO – Communications, S.A. por, alegadamente, terem constituído um cartel de repartição de mercado e fixação dos preços dos serviços de comunicações móveis, vendidos isoladamente ou em conjunto com serviços de comunicações fixas. – Vide Comunicado 25/2019, disponível em: https://www.concorrencia.pt/vPT/Noticias_Eventos/Comunicados/Paginas/Comunicado_AdC_201925.aspx?lst=1&Cat=2019. [5] Vide Gramckow, Heike e Walsh, Barry (2013), Developing Specialized Court Services: International Experiences and Lessons Learned, in Justice and Development Working Paper Series, 24/2013, Washington DC: World Bank; [6] Cf. Mendes Oliveira, A. (2018). Reforma JAF: algumas notas sobre medidas em matéria de contratação pública. In Revista de Direito Administrativo. N.º 3. Lisboa: AAFDL Editora.

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